quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Insônia




Não tenho dormido bem. Não sei bem por quê. Não tenho estado, desde que voltei das férias, em um período de observação de mim. Entrei na moenda dos dias corridos, da tentativa de academia – ainda não curto, mas estou indo – da necessidade de integrar meu tempo a todas as demandas que surgem e que eu não posso deixar passar. Tem aulas, tem conversas, tem gente junto, tem supermercado, condomínio, aluguel, teve festa, encerramento de ciclos e nessa roda-viva a ayurvédica que marquei no início da manhã foi desmarcada apenas uma hora depois. Lembrei da reunião já acertada e pensei que iria adorar observar meu corpo e os pensamentos que o povoam nesse fim e começo.

De repente hoje bateu uma paúra pelo tanto que estou planejando, eu que geralmente sigo o fluxo e vou encaixando as coisas de um jeito que até parece que foi acertado de antemão. Habilidade de olhar e ver o que dá ou não pra fazer, concluir, dissipar. Do que é possível atender, corpo e mente permanecendo sãos. Parei dia desses pra perguntar aos meus três filhos se eles estavam satisfeitos comigo, naquele sentido de quem ficou um tempo ausente e ainda está meio desconectada da ligação filial. Eles riram e me abraçaram. Amor sempre tem, né?

Queria o tempo suficiente pra me encaixar num abraço que não veio, pra feira que deixei pra depois e que agora me obriga a comer fora de casa e deixar pra lá a vontade de cozinhar. Preciso de pouso. E faz tão pouco estava solta, leve, curtindo ruas desconhecidas e outras que relembrei. Ainda não tive tempo de dar aquela parada que faz tudo encaixar. Aquela em que a gente se descobre, porque quase todo dia tenho de responder perguntas, lembrar da rotina, planejar futuro. Ainda não sei como pegar o que senti ao sair pelo mundo de um jeito que nunca tinha sido. Não deu tempo.

Começar este agosto é desafio. É entender dessa entrega e de como a gente quer muito que tudo dê certo. No percurso, mesmo não estando dormindo bem, acredito que as coisas se arrumam pela força amorosa que trago (sem modéstia nem convencimento). Apenas ela explica essa sequência de belezas que me surpreendem. O acolhimento de quem também entrega pra mim o que tem de bom, de esperançoso, de entusiasmo. Sigamos. Posso dormir jajá.


Carlota
080818


sábado, 18 de novembro de 2017

Ampulheta

Sou dessas pessoas que contam o tempo. Sei exatamente há quanto tempo a gente se conhece. Sei do dia que tua palavra veio em meio a outras mensagens e eu terminei me enredando nessa conversa e esquecendo de responder às aflições indistintas que me chegavam em paralelo à tua fala.

Sou dessas pessoas que contam. E nem precisa facebook pra lembrar que a amizade começou faz tempo, mais do que aquele que o algoritmo inventou de registrar. Sei a idade dos meus filhos, há quanto estou onde trabalho, o dia em que comecei meu primeiro, segundo e terceiro empregos.

Sei também dos aniversários queridos, dias e meses, porque os  anos acho que a gente acertou de não registrar. Conto ainda as laranjas quando as vou colocando no cesto, mesmo sabendo que comprei dez e depois mais duas, para aquele bolo de ameixa que, por incrível que pareça, também leva essa fruta e que uma amiga-vizinha me ensinou uma vida atrás.

Sim, conto esse tempo que me trouxe 48. Conto o tempo que perdi com medo de escrever a tese, conto o tempo daquele desabafo que, no final, tinha só duas linhas e meia e que era muito maior no pensamento.  Conto o tempo de quando cheguei a uma vila charmosa, faz um ano, tempo esse que fazia dois de um conhecimento, uma conversa em meio a mensagens aflitas, me trazendo uma brisa de mar bem pertinho, revolvendo cachos e sorrisos. Era um jeito de contar o passar, refugiada em edredons, séries e adolescências presentes em casa.

Eu conto o tempo o tempo todo. Sei de quando se vão, quando chegam, quando se apartam, quando brigam, quando amam. Sei de quando vivi, perdi, encontrei. Conto o tempo, compasso que não investiga minutos nem horas. Tampouco anos. O tempo é aquele que a gente precisa, fluxo que vem e vai, sem dizer muito.  

No conta-conta se muda tanto que, ao relembrar um instante distinto, a gente se vê diverso desse tempo passado. E aquilo que por ventura doía, alegrava ou inspirava conversas que chegavam em meio a mensagens aflitas e não respondidas, vira um tempo que não se precisa e não é mais.

Carlota

181117


sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Costelas



Feche o ciclo. Feche a porta. Abra as gavetas e jogue fora as contas pagas há sete anos, o comprovante do depósito, a foto revelada por engano, de alguém que você nem sabe quem é.  Feche o ciclo. Feche a porta. Abra as cortinas da janela às 8h de uma manhã que parecia cinco, deixa pra lá o blackout, mania de dormir no escuro essa, abre logo a janela, anima pra sair da cama, tem um bando de passarinhos cantando loucamente e tá estranho, mas tá tranquilo, tá confuso, mas é assim mesmo, tem um certo encantamento nesse encerrar das coisas e começar tantas outras.

Feche o ciclo. Feche os olhos. Abra esse peito como quem afasta com as mãos as costelas e sente os ossos com segurança e pés no chão. Como quem encaixa de verdade o ar dentro do pulmão esquerdo, do pulmão direito, assim, ao mesmo tempo, ampliando o esterno, esticando o ombro, vendo o diafragma subir e descer e dando meio que uma tontura por respirar direito.

Feche o ciclo. Feche as mãos, os braços em volta do corpo e acolha. Acolha a dor, se houver, acolha a alegria que surgir, acolha o envelope pardo e rabiscado que é o corpo, acolha a música desse passarinho insistente, acolha a luz amorosa, abra o espaço exato entre o que há e o que houve, entre o que se sente e o que se teve, entre a mesa e a cadeira, o lápis e o computador.

Feche o ciclo e encontre. Feche o ciclo e perdoe. Feche o ciclo e respire. Feche o ciclo e se alegre. Vai lá no coração do universo, feche o ciclo e festeje. Feche o ciclo e agradeça. Feche o ciclo e comece.

Comece um ciclo, mais outra e outra e outra volta em torno do sol. Comece mais um caminho, comece pela incerteza, comece pela vontade, comece pelo que se pretende, comece pelo que alegra.

Entenda, meu bem, é fluxo. Um jorro de luz, uma ou outra pedra escondida, faca amolada, corte, bordado, enfrentamento, medo, tudo junto, fluxo contínuo de energia infinita, universo feito gente, eu pedaço de mundo, de ciclos que se fecham e começam, entrelaçados.

Carlota
271017

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Sobre os tempos

Faz tempo quero escrever esse texto, motivada principalmente pela conversa com um amigo querido. Aquele que há alguns anos é um dos afetos que dividem o espaço do cotidiano em mensagens pelo whatsapp, recados no fb ou nos fortuitos encontros que acontecem pra nos lembrar que sempre é tempo de conversar e aprender mais sobre a gente.

Em uma noite na qual estava particularmente melancólica, ele relembrou de mim, tirando do juízo a lembrança de minhas próprias reflexões sobre um momento da vida dele. E fiquei lá, meio besta, me perguntando porque tem horas que a gente desaprende a viver aquilo no qual acredita. Sei lá que coisa doida é essa, que desarvora tanto e nos deixa sem ação. Sem vontade. Sem memória. 

São tempos, Carla. E lá foi ele me dizer o que eu mesma lhe havia dito. E que lhe tinha sido afago. Que a gente precisa entender que nem sempre tudo vai durar pra sempre. Que há os tempos de cada um junto da gente, assim como o tempo pra dor, o tempo para aquele riso solto ou pra carreira desabalada que a gente dá querendo encontrar alguém. 

E nem por isso, quando acaba, quer dizer que foi ruim. Nem por isso, quando acaba, é preciso sofrer pensando no que ficou pra trás e que às vezes volta, tão forte, que faz uma falta danada. Daquele colo incrível, da franqueza possível e construída junta, da familiaridade de dividir segredos com as pessoas que te recebem pela madrugada, cedem seu tempo, sua família, sua casa e apenas acolhem. 

Tem tempo que amizade acaba. Tem tempo que amor vai embora. Tem tempo do irmão que morre. Tem tempo do rebento que cresce e surpreende com o tamanho dos próprios sonhos.  Tem tempo de sentar na mesa e chorar. De morder o lábio de nervoso. De pingar a lavanda pra ansiedade acabar. 

Tem tempo pra tanta coisa e cada uma com seu espaço na vida, ou sua ausência, que é preciso, ou melhor, que eu preciso ver de pertinho com meu coração. Cheio de reservas, como quem estranha ser querido. Como quem às vezes se vê muito alegre e tranquilo. Ou descobre amor pela muda de limão galego que trouxe de um hostel na Vila Nazaré. Pedaço de gentileza que espero ver crescer. A seu tempo.

Para Marcelo, Clarissa, Jéssica e Francisco

Carlota

01122016


quarta-feira, 27 de julho de 2016

Sobre minha avó

Escondeu direitinho todas as histórias de infância e adolescência que não fossem aquelas que quis contar. Teve um irmão, Daniel, uma mãe, Josefa, não sei o nome de seu pai. Trabalhou na Renda Priori, morou na rua dos Pescadores, conheceu meu avô no Batutas de São José. Tinha uma cicatriz no lábio. Quando perguntei, respondeu brusca. E não falou mais. 

Era uma mulher forte. E só reconheci fortaleza quando me peguei olhando pra trás. Quando vi a coragem que é se impor em um universo branco e masculino, onde a mulher não cuidava dos negócios e, possivelmente, era enganada quando perdia o marido.

Só reconheci a beleza arrebatadora de sua alma, quando entendi o quanto acolheu todos os amigos, as amigas, os párias, as exceções. Seguia firme e só cambaleou quando as pernas começaram a doer.  O passo ficou pequeno, inseguro, e seu ir e vir “à cidade” mais espaçado.

Nunca foi de chamar pra cozinhar. Não suas netas, pelo menos. Nunca foi muito de macaxeira. Antes cuscuz ensopado, banana comprida, fatia parida, sopa de feijão. Entrava na cozinha e o almoço saía na hora. E fui aprendendo a cozinhar de tudo, sem medo. Ela conduzia.

Ninguém a enrolava no troco. Tinha só o quarto ano primário e dizia sempre: estude pra ser gente. Olhando pra trás e pra frente, cada vez que fui a um museu e me deparei com uma obra de arte; cada vez que vi o mundo em uma nova cidade; cada vez que venci uma etapa – uma delas no dia de seu aniversário – era dela que eu lembrava.

Foi pra Dona Creusa que corri no primeiro emprego, quando ainda tinha dúvidas. Foi a primeira que soube do primeiro bisneto. Era no espaço de sua cama solteirão, ao lado dela, que eu ficava pra curar as feridas ou falar das coisas da vida.

Era escorpiana de 24 de outubro, nasceu em 1919. Quando morreu, quase não tinha brilho nos olhos. Dois anos antes tinha perdido o caçula. Aquele pra quem tinha o jeito mais amoroso. E de quem sentia falta todo dia.

Tive a sorte de contar com seu afeto na infância e na vida, de pousar a cabeça no travesseirinho feito na barriga, de ter aprendido o nome das ruas do centro do Recife de tanto visitar as lojas que hoje nem existem mais.

Da senhora, Dona Creusa, ainda queria a convivência com os bisnetos. Eles iam aprender direitinho o que é ter uma avó de implicar brincando, de costurar vestidos, de avisar que o mundo é grande e a gente cabe nele. E, hoje ainda, quando escuto a ave maria, lembro de quem me ensinou a viver. A benção, minha vó.

Carlota
27072016

domingo, 17 de julho de 2016

Espaços habitados

Hoje me peguei andando pela casa, descalça, tentando encontrar um velho caminho que já não faço mais. O chão não tem mais o frio da cerâmica. Não preciso mais subir escadas para chegar ao quarto. Há pouco aprendi o lugar de todas as tomadas e interruptores. Ainda me assusto com o ruído de motos velozes pela madrugada. E olho a porta de madeira tentando ver o terraço que, ops, virou varanda ladrilhada.

Fico sentindo a mudança como tentativa de encaixe. Meu corpo se estende, amplia, reverbera pelos cantos, paredes, pelo piso de madeira. Sou do tamanho desses quartos, das janelas que ocupam uma parede inteira. Sou do tamanho da cozinha, da área onde coloquei a máquina de lavar.

Ocupar, habitar, viver. Comecinho tive de acalmar o coração enquanto desencaixotava os lençóis, os pratos, meus livros. Tive de me convencer de que o caminho era certo, que tudo ia ser bom. Tive de falar isso várias vezes pra mim. Já acendi incensos, instalei a rede, quase matei uma planta, dei sorrisos aos vizinhos.

Já recebi amigos, pra visita, dormida, cerveja, vinho. Um de cada vez, porque ainda tem um monte de reticências aqui. Mistura de medo de me apegar ao espaço, como era à minha buganvília, ao jardim da frente de casa, à goiabeira, ao pé de laranja. Às janelas da minha cozinha. Aos pássaros pela manhã.

Faz pouco descobri um ninho na árvore que cobre praticamente todo o meu andar. Ele fica bem pertinho da janela dos meninos. Dei um sorriso e procurei passarinhos. Eles cantam bem cedinho, talvez pra avisar que eu não devo sentir tanta falta de casa. Que casa é minha alma habitando o espaço em que resolvi pousar. Com um trio amoroso e cúmplice bem junto. Eles me ancoram. E habitam esse lugar.

Carlota

17072016 

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

A falta que ela me faz

Tenho um histórico de mulheres fortes no caminho. Daquelas que não desistem, que alcançam, dão tudo de si. Tenho um histórico de mulheres que foram embora, seja pela morte ou por viagem, seja por uma briga ou por alguns equívocos que nem sempre a gente pode desfazer.

Quando lembro de minha avó, Dona Creusa, todo um universo de felicidade chega pra mim. Quando lembro dela, vem o gosto de feijão com arroz, revejo brincos e colares de aniversário, ouço novamente seus conselhos. E sinto o corpo quente, gordinho, acolhedor, meu travesseiro na infância e meu pouso e calmante na adolescência e vida adulta.

Minha mãe, presença menorzinha em minha vida, afinal foram só nove anos, lembro pelas unhas vermelhas e intensa vontade de viver. Pelos gritos e exuberância, pelos cabelos arrumados e olhos amendoados como os da minha irmã. Revejo cada um dos seus sorrisos, saboreio até as migalhas de seus bolos maravilhosos. Eró, a irmã mais velha dos meus tios, a mulher com tudo para ter vivido mais. Mas, pelo que viveu, foi muito e foi linda.

Penso na amiga querida que uma sociedade estragou. E quase não consigo admitir essa falta, uma angústia de dois anos. Até eu entender que tudo muda. E a gente tinha mudado, não era mais cúmplice não. Mas o desejo de que a vida seja leve pra nós duas permanece. A gente precisa é muito disso. Leveza, alegria, amor.

Aí vem uma delícia de aluna, de ex-aluna, de amiga, a resolver empacotar todos os pertences, jogar fora as tralhas e partir. Recife não cabia mais nos sonhos, era pequeno, era só isso, Recife. Com lembranças legais e outras não. Gabriela. A quem entrego muito amor e partilha, por tudo que ela me ofereceu: de vistas lindas do Capibaribe até amigos, até o vinho, até a dor que vez em quando eu lhe contava.

Sinto falta dessas mulheres pertinho. Sinto falta também da minha filha, minha nega, minha linda. Que cresceu, é Marina, e não mais menininha, Nina ou Pipoca. A que ainda hoje guarda no espaço entre a raiz dos cabelos e a testa um perfume doce e todo seu. O cheiro da minha flor menina. .

Pra essas mulheres incríveis e lindas, tão fortes e corajosas, desejo todo o bem do mundo. E incluo no pacote outras a me fazer falta mas próximas, ao alcance de um post, uma ligação, um abraço. Salett, Aline, Verônica, Cris, Mariana. Tenho de aprender a entregar o amor pessoalmente. Quem sabe assim ele circula mais forte e esperançoso de dias de sol. Iluminado. 

Carlota